Março/2006
O problema da hierarquia é que você, que vive de aluguel, tem que respeitá-la. Foi pensando no aluguel que ouvi atentamente quando Paulo Lima sugeriu que entrevistássemos a Angélica para a edição da Tpm que pretendia falar basicamente sobre poder feminino. O outro problema da hierarquia é que, mais vezes do que gostaríamos de admitir, o sujeito que está acima de você no organograma está lá porque é mais competente (ou é competente há mais tempo, o que dá na mesma). Ainda assim, foi descrente que eu apertei a campainha da casa que a apresentadora divide com o marido, Luciano Huck, na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro. O calor de 38 graus certamente contribuiu para minha preguiça, que começou a se dissipar quando rompi lar adentro. Na piscina, com a babá, o miúdo, e muito, muito branquinho, Joaquim tentava se livrar da quentura.
Angélica chegou depois de 15 minutos. Toda em tons de verde, que, aliás, lhe caem muito bem, e tão branca quanto o filho. Em segundos pude constatar que as lentes não lhe fazem justiça: a moça é muito mais bonita em três dimensões. E então, para justificar o poder da hierarquia, ela começou a falar. E a me fazer rir. E a encantar. E eu me peguei ecoando uma frase de meu pai: “De boba, essa não tem nada”.
Angélica é sarcástica, ácida, irônica. Sabe que é bonita, que tem charme, e não economiza munição. Sabe aonde quer chegar, mas não marreta o caminho até lá. Muito pelo contrário: usa a intuição feminina para surfar a vida. Com o corpo solto na correnteza, espera pelo tempo certo para deixar encaixar carreira, família, maternidade, aparência.
Nasceu em família de classe média em Santo André, ABC paulista, há 32 anos, e só foi parar na TV por conta de um trauma infantil: a casa foi assaltada, o pai, baleado, e ela passou a não querer mais sair na rua. Ficava em casa, escondida do mundo cruel que quase levou a vida do pai. Numa tentativa de curar a filha, dona Angelina a levou ao programa do Chacrinha, que era, a bem da verdade, o único passatempo da menina. Todo sábado à tarde ela ficava na frente da TV imitando as chacretes. Era uma válvula de escape, um dos raros momentos em que a menina reclusa se permitia sorrir. Angélica tinha 4 anos e nunca mais saiu da frente de uma lente. Hoje, comanda o quadro Video Game, dentro do Video Show, e está prestes a estrear um novo programa na Globo.
Aqui, ela fala sobre as várias fases da vida, sobre envelhecer publicamente, sobre ter pirado por um tempo, sobre o peso da fama e do poder. Se você virar esta página vai, assim como eu, se surpreender com uma Angélica que de angelical não tem muita coisa, e que não sabíamos que existia. Por mais que me doa admitir, o Paulo tinha razão.
Como era sua infância no ABC?
A gente era de classe média, família grande. Eu tenho só uma irmã, que é 11 anos mais velha, mas a família é enorme: primos, oito tios de um lado, sete do outro... Meu pai era metalúrgico, e minha mãe, dona de casa.
Todos no ABC paulista?
Tudo por ali. E minha irmã enfim, 11 anos mais velha, era como mãe também. Eu brincava na rua, aquelas coisas bem bairrão, que era ótimo. E isso é uma coisa que eu gostaria de dar para o meu filho, sabe? Aquela infância saudável, tranqüila, sem essa pressa de hoje que parece dominar as crianças.
Como uma menina do ABC foi parar na televisão?
Eu tinha 4 anos quando nossa casa em São Bernardo foi assaltada. Foi um assalto grande, violento, meu pai ficou muito machucado, levou tiros, e eu, que acabei testemunhando tudo, fiquei totalmente traumatizada. Tão traumatizada que eu passei a não querer mais ver gente, não saía de casa, quando saía colocava uma manta na cabeça, para não ser vista. E, nessa minha reclusão, a única coisa que eu gostava de fazer era assistir ao programa do Chacrinha. Eu ficava dançando na frente da TV, imitando as chacretes. Aí, um dia, minha mãe perguntou se eu ia gostar de ir ao programa. E eu surpreendi a todos quando disse que adoraria. Minha mãe achou que era uma chance de me tirar de casa, de me fazer ver gente. E a gente foi. Sem marcar nem nada.
“Foi um assalto violento. Meu pai foi baleado, e eu vi tudo. Fiquei traumatizada. Não queria mais sair de casa, não queria ver gente”
E ele recebeu vocês?
Contaram a história pra ele, que se tratava de uma criança traumatizada, e ele recebeu minha mãe. Ela falou: “Olha, eu não sei se ela vai conseguir entrar no palco, mas eu gostaria de tentar”. Era um concurso da menina mais bonita do Brasil.
Foi quase um tratamento psicológico.
Foi. E aí ele me recebeu, me botou no colo, ficou conversando comigo, me relaxou, foi superfofo. E eu entrei no palco e participei do concurso. Era um concurso eliminatório, então, se eu não fosse eliminada naquela semana, tinha que voltar na próxima. E eu não era eliminada, e continuava voltando. Passava pelo palco com uma plaquinha com meu nome na mão, sabe [risos]? Bom, aí aconteceu que eu ganhei o concurso. Virei a garota mais bonita do Brasil. Aos 4 anos [risos].
Quando você teve seu primeiro programa?
Com 12 anos. Meu empresário era também empresário do Balão Mágico, e como a Simony, que fazia um programa na Manchete, ia sair para fazer outras coisas eles precisavam de uma apresentadora, uma pessoa pra substituir. Aí fui pra TV Manchete. Eu não imaginava ser apresentadora de programa infantil. Fazer comercial, desfile era tudo muito fácil. Mas, quando via alguém apresentando um programa, pra mim aquela pessoa era especial, porque eu achava muito difícil. Quando eu vi, estava com o microfone na mão.
Você começou a ratear na escola?
Com 11, 12 anos. Aí ela me tirou dos comerciais. “Você não vai mais fazer!”, ela disse. Eu chorava, queria, e ela: “Não vai fazer e pronto!”. E olha que ela precisava muito daquela grana. Eu acho que ela teve sacação, instinto. A mãe falou mais alto do que a empresária. Eu era uma criança e às vezes ia ao mercado com a minha mãe e as pessoas me reconheciam, aquilo me incomodava. Eu me escondia, não dava autógrafo. “Não, não quero! Não, não vou!”
Nunca rolou um planejamento de carreira?
Nunca. As coisas sempre foram acontecendo. Porque eu tinha um programa e esse meu empresário na época era um empresário musical, ele me levou pra Sony, e eu gravei um disco. Aconteceu. Estourou uma música: “Vou de Táxi”. Aí a Manchete quis que eu apresentasse um programa mais adolescente, o Milk Shake, e eu fui. Não planejei ir para a Globo. Aconteceu. Agora também. Eu não planejei parar de fazer programa infantil. Aconteceu quando tentamos encontrar um novo formato. Durante dois anos senti uma agonia porque a gente não conseguia encontrar o formato do programa novo. Fiquei fora do ar, e ficava chateada com a Globo: “Ah, estou fora do ar e tal...!”. Mas na verdade eu não estava querendo mais fazer o infantil, né? Paralelamente a isso, começamos um projeto de um programa não mais pra criança, que só vai estrear em abril. Porque ele ia estrear há dois anos, e eu engravidei. E aí eu parei com tudo e fiquei só no “Vídeo Game”. Quer dizer que um programa que eu esperava já havia três ou quatro anos foi adiado por uma gravidez, que também não foi planejada. Mas eu nunca pensei: “Vou estrear um programa novo, então não posso engravidar agora!”. Não pensei que esse programa era meu sonho. Eu pensei: “Ah, esse programa não vai estrear agora, vai estrear daqui a dois anos. Porque eu vou ter filho!”.
Essa nossa geração é a primeira da qual a sociedade espera que, além de esposas, mães e mulheres magras, também sejamos profissionais bem-sucedidas. Você não acha muita coisa?
Isso me revolta um pouco. Porque é uma exigência nossa, mas é uma exigência nossa que é real. Eu acho muito triste. Hoje eu estou vivendo esses quatro momentos. Tenho um trabalho que me exige estar bem sempre, porque eu estou no vídeo. E eu quero me sentir bem e bonita, eu tenho um filho de quem eu quero cuidar, um marido que eu amo e de quem também gosto de cuidar e de dar toda a atenção... eu quero fazer tudo. Tipo, agora são quatro e meia e eu tenho que levar o Joaquim não sei onde, fazer não sei o quê. É muita exigência, muita expectativa. E é muito cruel porque a gente dá conta disso tudo. É verdade. Mulher tem uma capacidade incrível de conseguir fazer isso tudo. Não acho certo, sabe? Essa independência que a gente conquistou tem um ônus muito caro, muito grande.
Como faz para ser o centro das atenções desde os 4 anos e não pirar?
Ah, é difícil me pirar [risos]. Difícil alguma coisa me deixar maluca. Mas acho que essa simplicidade da minha família acabou ajudando. Era uma família muito humilde, sem instrução psicológica ou sei lá o quê. Minha mãe foi muito no instinto materno. Ela dizia: “Olha, tá bom, eu preciso desse dinheiro, mas minha filha tem colégio amanhã e não vai ficar gravando até tarde. Então, sinto muito, mas ela não pode fazer esse comercial”.
Você acha que pulou uns anos da infância?
Acho que pulei a adolescência. Eu não tive adolescência mesmo. Uma coisa de festa, beijar na boca... blaaá, isso eu não tive.
E tudo bem?
Não sei. Trabalhei muito intensamente desde os 12 anos, que é o período em que você tem aquelas descobertas. E eu comecei a querer me entender, a me questionar, com uns 22, 23 anos. Foi quando bateu a adolescente em mim. Fui fazer análise, morar sozinha.
“Nunca pensei: ‘Vou estrear um programa novo então não posso engravidar’. Pensei: ‘Esse programa não vai estrear. Porque vou ter um filho’”
Rebeldia tardia?
Isso. Bateu a rebelde em mim. Queria entender o que era a minha vida, a minha profissão, por que eu fazia aquilo.
Foi por essa época aquele seu tumultuado romance com o Maurício Mattar?
Essa história passa por um período da minha vida. Comecei a namorar ele com 23 anos, exatamente quando saí de casa e fui fazer análise. E comecei a namorar uma pessoa que na imagem no imaginário coletivo, não era quem o Brasil esperava para a menininha loirinha e bonitinha que animava criancinhas na TV. Eu tenho minhas maluquices, sempre tive, só que não passava pra ninguém. As pessoas não sabiam disso. E aí chegou um determinado momento em que comecei a me expor, a sair, a ser flagrada na noite. Porque eu não estava me entendendo, queria saber um monte de coisa, estava num momento de mudança. E, com essa mudança, formou-se uma outra imagem de mim: “Então agora ela é a tumultuada, agora ela é a louca! Tadinha, tinha tanto futuro, e agora essa menina se perdeu na vida” [risos].
Mas você foi feliz vivendo essa vida de baladas?
Muito. Estava apaixonada, feliz, leve. E mesmo depois que terminei com o Maurício eu namorei e saí pra caramba! Muito bom, foi ótimo. Eu acho que todo mundo em um momento da vida precisa dar uma pirada. Uma pirada que seja boa. Dançar, namorar, sair, se divertir. A minha não foi com 15, foi com 23. E eu fui deixando ela me levar assim. Sem me preocupar se a minha imagem ia sofrer muito. Na época os empresários vinham me falar: “Olha, tá ruim isso! Você não pode aparecer desse jeito na noite, você faz um programa infantil, você não pode aparecer às quatro da manhã num show dançando maluca!”. Mas eu não estava ouvindo ninguém. Graças a Deus [risos]. Eu precisava daquilo.
Você leva na boa essa coisa de ser uma pessoa pública?
Pra mim essa história de ser celebridade sempre foi rotineira. Um helicóptero sobrevoa minha casa para me flagrar na piscina e eu vou achar até engraçado. “Ah, tá tirando foto minha ali na piscina, ahahahahaha!” Ok. Eu sou uma pessoa pública, eu vou passar por isso. Mas, quando entra em cena meu filho, isso me irrita um pouco. Porque ele não é uma pessoa famosa. Ele é o Joaquim, filho de pessoas famosas. Mas ele tem direito ao anonimato. Logo que ele nasceu todo mundo queria fazer comercial com ele. Todas as fraldas, todas as papinhas, as revistas queriam capa, não sei o quê. Mas hoje tem um respeito muito grande. Se eu saio com ele na rua e vem um fotógrafo, eu falo: “Não fotografa!”. E eles não fotografam.
A impressão que dá pra gente que está de fora é que os famosos todos têm acesso uns aos outros, mesmo não se conhecendo. É mais ou menos assim: “Eu sou famosa, ela é famosa, vou ligar para ela e convidar pra minha festa”. É assim?
É. E eu acho um absurdo! O Joaquim já foi convidado para todas as festas infantis de todo o Rio de Janeiro, de gente famosa que ele não conhece [risos]. E mando presente, mas ele não vai. Mas é uma dinâmica maluca. Não faz sentido! Não faz sentido, porque a criança nunca brincou com essa outra criança... Ela não sabe quem é essa outra criança [risos].
“Vivemos em um país carente, e a TV é uma companhia, uma esperança, uma ilusão”
De todos os poderes que você conquistou na vida, o da beleza, o da mídia, o da profissão, o de ser esposa e mãe, qual o mais forte?
O de ser mãe. Quando você da à luz, se sente realmente poderosa. Na primeira semana, eu amamentando o Joaquim, falava: “Gente! Eu sou o máximo! Eu posso tudo!” [risos]. Helloooo!” Nenhum programa que eu fiz na televisão, nenhuma notícia que eu dei no microfone, nenhum fã, nenhum presente, nada supera essa sensação.
E homem nunca vai poder passar por isso!
É isso! É por isso também que você consegue fazer tudo. Porque, se eu consigo amamentar, eu consigo ir lá gravar, eu consigo chegar em casa, eu consigo tomar um banho e ir jantar com meu marido. Eu consigo... eu consigo tudo! Eu tô podendo [risos]!
Ser mãe é quase obrigatório?
Eu acho que toda mulher, se tiver a chance, se ela puder, tem que passar por essa experiência. Porque é muito prazeroso, muito poderoso. Melhor que isso, só amamentar. Depois da sensação do parto a melhor sensação é a de dar o peito, que é a de prover, ser a mamadeira daquela criança, você estar alimentando um outro ser humano, que depende do seu alimento, de um alimento que você produz dentro do seu corpo.
É um poder muito louco.
Tem uma outra sensação muito boa que é uma sensação meio animal. Eu me peguei esses dias cheirando o Joaquim.Você cheira a criança, você lambe, você tem uma coisa, um instinto muito animal, primata. É muito bom. É o poder total. É o poder maior sem dúvida nenhuma. É você ser mãe.
Por esse raciocínio toda mulher é igualmente poderosa?
Eu tenho o mesmo poder que a Zezinha de Santa Cruz do Itapemirim, que lava roupa o dia inteiro no tanque, teve dez filhos... Ela tem até mais poder que eu. Como é que ela consegue? Cuidar de dez filhos? Essa mulher é que é a poderosa! É isso que é poder.
“Na primeira semana, amamentando o Joaquim, eu falava: ‘Gente, eu sou o máximo! Eu posso tudo!’”
Fonte:revistatpm.uol.com.br
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